quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

1º Texto de 2012


A DESTINAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL FRENTE À GLOBALIZAÇÃO E OUTRAS QUESTÕES ATUAIS

O patrimônio cultural pode ser considerado como o conjunto de bens, materiais ou vivenciados, escolhidos entre os elementos que compõem as referências históricas e culturais de uma sociedade, com intenção de permitir a construção da memória e da identidade dessa coletividade. Nesta concepção, o patrimônio está ligado às raízes e a vivência de um grupo social e permite o desenvolvimento a identificação deste grupo com seus símbolos e experiências.
Em contraste com esta conceituação, o modo de vida da sociedade ocidental contemporânea, baseado no consumismo e em relações estabelecidas a partir de um mundo globalizado, tem colocado em cheque valores que permitiam diferenciar os carácteres de singularidade existente em cada local. Esta situação conduz à redução das diferenças culturais e tendem a causar uma uniformização dos costumes, em função deste “encurtamento das distâncias” permitido pela globalização. Tal fato traz como consequência a perda de pertencimento sociocultural local e interfere na forma dos indivíduos fruírem seus referenciais.
Os referenciais culturais são os vínculos que dão sustentação a peculiaridade de uma determinada sociedade. Quando estes laços sofrem interferências, as relações sociais deixam de ser regidas pelos valores que as acompanharam em todo o processo de formação da identidade daquele grupo e assumem novos referenciais. É necessário considerar que a transformação está no cerne dos caminhos identitários assumidos por um grupo, entretanto, as variações provocadas pela globalização têm causado mudanças drásticas, até então jamais experimentadas por qualquer sociedade. A difusão de uma cultural global, caracterizada por uma uniformização dos costumes, tem como resultado direto a perda do sentimento de pertencimento social. MELO (2008) discorre acerca dessa assertiva:

“[...] A perda do sentimento de pertencimento social vai gerar, na contemporaneidade, um individualismo que se caracteriza por um esgotamento do presente, cuja atitude limita-se a fruir incessantemente cada novidade como chances únicas, pois logo serão substituídas por outras novidades. Voltado à consumação do presente, o homem individualista de nossa época se afasta cada vez mais do passado que lhe garantiam um percurso histórico coerente; e de outro, tornam-se para ele incertas as suas possibilidades de futuro, de maneira que ele passa a viver com um constante sentimento de não-retorno, levando sua vida como consumidor final de si mesmo e de suas chances.” (MELO, 2008, p.138)

Nesse sentido, o tema Patrimônio Cultural tem sido recorrentemente discutido nas últimas décadas como o antídoto para o sentimento de perda das referências culturais. A patrimonialização de diversos bens, sejam eles materiais ou vivenciados, viria a asseverar a preservação da memória coletiva e, assim, garantir um percurso histórico coerente de acordo com o pensamento do autor citado.
Entretanto, esse recurso adotado contra o enfraquecimento das raízes da memória coletiva deve possuir uma fundamentação adequada, para que não seja produzido um referencial artificializado e não condizente com a trajetória da sociedade que o contém. Assim, a preservação dos bens culturais ao mesmo tempo assume uma dúplice condição[1], uma que assegura a manutenção da identidade do grupo e outra que pode causar a formação de identidades artificializadas.
 A primeira condição indicada corrobora com a necessidade de se manterem laços entre um presente altamente mutável e o passado, servindo como âncora para amparar a falta de referenciais atuais e aquiescer significado ao futuro. O efeito museal, consequente desse processo, coincide com uma luta cotidiana contra o esquecimento, consentida na percepção e proteção de qualquer traço existente das civilizações passadas, sejam eles materiais ou correspondentes a práticas culturais ancestrais. Para tanto, são necessários definir indicadores deste tempo passado, a fim de proteger a sociedade contemporânea de sua inconstância de valores socioculturais e referenciais homogeneizados. Paul Ricceur (2007) aborda tal questão em sua obra A Memória, a História, o Esquecimento:

“[...] Trata-se de fato de indicadores que visam proteger contra o esquecimento. Distribuem-se dos dois lados da linha divisória entre a interioridade e a exterioridade; encontramo-los uma primeira vez na vertente da recordação, quer sob a forma fixa da associação mais ou menos mecânica da recordação de uma coisa por outra que lhe foi associada na aprendizagem, quer como uma das etapas vivas do trabalho de recordação; encontramo-los uma segunda vez como pontos de apoio exteriores para a recordação: fotos, cartões postais, agendas, recibos, lembretes (o famoso nó no lenço!). É dessa forma que esses sinais indicadores advertem contra o esquecimento no futuro: ao lembrar aquilo que deverá ser feito, eles previnem que se esqueça de fazê-lo [...].” (RICCEUR, 2007, p.55)

A seleção de bens culturais consequente da patrimonialização, razão da preocupação apresentada na segunda condição da preservação do patrimônio, pode conduzir a formação de uma memória intencional, a mercê das intenções do grupo detentor do poder. Apesar da validez do método baseado na musealização, vemos na atualidade a fragilidade das bases que suportam tal processo, uma vez que, a falta de sustentação das identidades culturais, diante da homogeneização sociocultural provocada pelos efeitos da globalização, tende a desfazer gradualmente a diversidade entre os povos. O diferente passa então a representar o exótico, nem sempre bem quisto no mercado global de consumo cultural, o que permitiria uma artificialização do patrimônio local em função do interesse em reduzir as particularidades impróprias aos consumidores.
Segundo Stuart Hall (2006)[2] foi a difusão do consumismo global, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural” visto na fruição do patrimônio cultural. Ainda, este autor considera que:

“[...] Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ – como ‘consumidores’ para os mesmos bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes uma das outras no espaço e no tempo. À medida em que culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural. [...]” (HALL, 2006, p.74)

Outra questão refere-se à escolha daquilo que será preservado. A opção pela preservação do patrimônio deve concernir à comunidade que detém o bem cultural, pois garante a proteção diária e irrestrita a este. Até pouco tempo, as políticas patrimoniais organizadas pelo setor público, baseada no trabalho de especialistas, eram inexoráveis, impondo a preservação através do ato de tombamento e de registro. Estas medidas na maioria dos casos geraram interpretações negativas da ação estatal, uma vez que não havia uma aproximação entre governo e comunidade no intuito de estabelecer um canal para o debate. REZENDE (2007) refere-se ao deslocamento entre as ações realizadas por especialistas e os grupos identitários na noção tradicional de Patrimônio:

As noções tradicionais de Patrimônio ancoravam-se na ideia da descoberta (ou resgate) de uma memória e uma identidade nacional a ser preservada; atividade possível apenas através da intervenção de especialistas. Esta noção de descoberta ou resgate estava intimamente ligada à ideia de imutabilidade da memória e, portanto, da identidade, o que garantiria a permanência e universalidade dos bens culturais, objeto da ação patrimonialista. Hoje está claro, para variadas áreas de conhecimento, que tanto a memória como a identidade são frutos de processos de construção, que não ocorrem apenas nas esferas autorizadas, mas são realizados continuamente pelos mais variados por grupos (e mesmo pelos indivíduos), em permanente transformação. (REZENDE, 2007, p. n/d)

A partir da problemática posta pode-se constituir uma acepção para interpretação do patrimônio cultural, no sentido de avaliar “para que e para quem” preservar e “de quem” é esse patrimônio.
Em primeiro lugar, pode-se considerar a preservação do patrimônio cultural como parte de um processo de reconhecimento de identidades que tem sido afetado pela globalização e pelo advento de um mercado de consumo massificado da cultura. Portanto, contrariamente a esse intuito, o patrimônio não pode ser visto somente como mercadoria. Sua função não pode ser estabelecida a partir do potencial de comercialização, mas concebida e difundida como fator de consolidação dos referenciais de memória coletiva, capaz de intermediar processos identitários em um grupo social. Esse papel de intermediação atende a necessidade de agregar valor aos símbolos e experiências que diferenciam uma determinada sociedade e, inegavelmente, permitem a perpetuação de valores comuns, crenças, hábitos e relações sociais.
A adoção direta da patrimonialização como antídoto a perda de identidade e de referenciais socioculturais não produz efeito se constituída de modo arbitrário. O reconhecimento deve estar introjetado no grupo que contém o bem cultural a ser preservado, a fim de não reduzir a preservação a uma obrigação de Estado. A proteção assentida no seio da sociedade mantenedora dá ao objeto condições de perpetuação e garante uma função a este, enquanto elemento apropriado pelos indivíduos e agregado de valor cultural.
Por último, ressalta-se que o patrimônio cultural deve servir a uma sociedade, qualquer que seja, no sentido de ser servo da memória coletiva e do processo identitários desta; mas, também, ser útil ao desenvolvimento local. Não cabe incentivar a negação da exploração do potencial socioeconômico de um bem cultural em prol somente da preservação da singularidade de cada grupo, pois isto seria negar a transformação contida na evolução da própria cultura humana. Porém, antes disso, é preciso significar as ações, os elementos e os conceitos por trás da preservação do patrimônio, para que os métodos adotados não sejam esvaziados de validade e fiquem à mercê do consumismo provocado pela cultura massificada.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. 102 p.

MELO, Danilo A. S.. Esquecimento e Memória no Contemporâneo: Interlocução entre Tarde e Nietzsche. In.: BARRANECHEA, Miguel Angel de. As Dobras da Memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 131-141.

REZENDE, Darcilene Sena. Patrimônio documental e construção da identidade em tempos de globalização: a classificação arquivística como garantia da pluralidade de memórias. In: VII Congreso de Archivología del Mercosur: archivos, patrimonio documental del futuro, 2007, Viña del Mar (Chile). VII Congreso de Archivología del Mercosur: archivos, patrimonio documental del futuro. Santiago : ASOCARCHI, 2007.

RICCEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. 535 p.



[1] As condições de manutenção e formação de identidade têm como fio condutor o mesmo processo, a musealização dos espaços e das coisas.
[2] In: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006, p.75.