A DESTINAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL FRENTE À GLOBALIZAÇÃO E OUTRAS
QUESTÕES ATUAIS
O patrimônio
cultural pode ser considerado como o conjunto de bens, materiais ou
vivenciados, escolhidos entre os elementos que compõem as referências
históricas e culturais de uma sociedade, com intenção de permitir a construção
da memória e da identidade dessa coletividade. Nesta concepção, o patrimônio
está ligado às raízes e a vivência de um grupo social e permite o
desenvolvimento a identificação deste grupo com seus símbolos e experiências.
Em
contraste com esta conceituação, o modo de vida da sociedade ocidental contemporânea,
baseado no consumismo e em relações estabelecidas a partir de um mundo
globalizado, tem colocado em cheque valores que permitiam diferenciar os carácteres
de singularidade existente em cada local. Esta situação conduz à redução das
diferenças culturais e tendem a causar uma uniformização dos costumes, em função
deste “encurtamento das distâncias” permitido pela globalização. Tal fato traz
como consequência a perda de pertencimento sociocultural local e interfere na
forma dos indivíduos fruírem seus referenciais.
Os referenciais
culturais são os vínculos que dão sustentação a peculiaridade de uma
determinada sociedade. Quando estes laços sofrem interferências, as relações
sociais deixam de ser regidas pelos valores que as acompanharam em todo o
processo de formação da identidade daquele grupo e assumem novos referenciais. É
necessário considerar que a transformação está no cerne dos caminhos
identitários assumidos por um grupo, entretanto, as variações provocadas pela
globalização têm causado mudanças drásticas, até então jamais experimentadas
por qualquer sociedade. A difusão de uma cultural global, caracterizada por uma
uniformização dos costumes, tem como resultado direto a perda do sentimento de
pertencimento social. MELO (2008) discorre acerca dessa assertiva:
“[...] A perda do sentimento de pertencimento social
vai gerar, na contemporaneidade, um individualismo que se caracteriza por um
esgotamento do presente, cuja atitude limita-se a fruir incessantemente cada
novidade como chances únicas, pois logo serão substituídas por outras
novidades. Voltado à consumação do presente, o homem individualista de nossa
época se afasta cada vez mais do passado que lhe garantiam um percurso
histórico coerente; e de outro, tornam-se para ele incertas as suas
possibilidades de futuro, de maneira que ele passa a viver com um constante
sentimento de não-retorno, levando sua vida como consumidor final de si mesmo e
de suas chances.” (MELO, 2008, p.138)
Nesse
sentido, o tema Patrimônio Cultural tem sido recorrentemente discutido nas
últimas décadas como o antídoto para o sentimento de perda das referências
culturais. A patrimonialização de diversos bens, sejam eles materiais ou
vivenciados, viria a asseverar a preservação da memória coletiva e, assim, garantir um percurso histórico coerente
de acordo com o pensamento do autor citado.
Entretanto,
esse recurso adotado contra o enfraquecimento das raízes da memória coletiva deve
possuir uma fundamentação adequada, para que não seja produzido um referencial
artificializado e não condizente com a trajetória da sociedade que o contém. Assim,
a preservação dos bens culturais ao mesmo tempo assume uma dúplice condição[1],
uma que assegura a manutenção da identidade do grupo e outra que pode causar a
formação de identidades artificializadas.
A primeira condição indicada corrobora com a
necessidade de se manterem laços entre um presente altamente mutável e o
passado, servindo como âncora para amparar a falta de referenciais atuais e
aquiescer significado ao futuro. O efeito museal, consequente desse processo,
coincide com uma luta cotidiana contra o esquecimento, consentida na percepção
e proteção de qualquer traço existente das civilizações passadas, sejam eles
materiais ou correspondentes a práticas culturais ancestrais. Para tanto, são
necessários definir indicadores deste tempo passado, a fim de proteger a
sociedade contemporânea de sua inconstância de valores socioculturais e
referenciais homogeneizados. Paul Ricceur (2007) aborda tal questão em sua obra
A Memória, a História, o Esquecimento:
“[...] Trata-se de fato de indicadores que visam
proteger contra o esquecimento. Distribuem-se dos dois lados da linha divisória
entre a interioridade e a exterioridade; encontramo-los uma primeira vez na
vertente da recordação, quer sob a forma fixa da associação mais ou menos
mecânica da recordação de uma coisa por outra que lhe foi associada na
aprendizagem, quer como uma das etapas vivas
do trabalho de recordação; encontramo-los uma segunda vez como pontos de apoio
exteriores para a recordação: fotos, cartões postais, agendas, recibos,
lembretes (o famoso nó no lenço!). É dessa forma que esses sinais indicadores
advertem contra o esquecimento no futuro: ao lembrar aquilo que deverá ser
feito, eles previnem que se esqueça de fazê-lo [...].” (RICCEUR, 2007, p.55)
A
seleção de bens culturais consequente da patrimonialização, razão da
preocupação apresentada na segunda condição da preservação do patrimônio, pode
conduzir a formação de uma memória intencional, a mercê das intenções do grupo
detentor do poder. Apesar da validez do método baseado na musealização, vemos
na atualidade a fragilidade das bases que suportam tal processo, uma vez que, a
falta de sustentação das identidades culturais, diante da homogeneização
sociocultural provocada pelos efeitos da globalização, tende a desfazer
gradualmente a diversidade entre os povos. O diferente passa então a
representar o exótico, nem sempre bem quisto no mercado global de consumo
cultural, o que permitiria uma artificialização do patrimônio local em função
do interesse em reduzir as particularidades impróprias aos consumidores.
Segundo
Stuart Hall (2006)[2] foi a difusão do consumismo global, seja
como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado
cultural” visto na fruição do patrimônio cultural. Ainda, este autor considera
que:
“[...] Os fluxos
culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de
‘identidades partilhadas’ – como ‘consumidores’ para os mesmos bens, ‘clientes’
para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e imagens – entre
pessoas que estão bastante distantes uma das outras no espaço e no tempo. À
medida em que culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências
externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que
elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração
cultural. [...]” (HALL, 2006, p.74)
Outra
questão refere-se à escolha daquilo que será preservado. A opção pela
preservação do patrimônio deve concernir à comunidade que detém o bem cultural,
pois garante a proteção diária e irrestrita a este. Até pouco tempo, as
políticas patrimoniais organizadas pelo setor público, baseada no trabalho de
especialistas, eram inexoráveis, impondo a preservação através do ato de
tombamento e de registro. Estas medidas na maioria dos casos geraram
interpretações negativas da ação estatal, uma vez que não havia uma aproximação
entre governo e comunidade no intuito de estabelecer um canal para o debate.
REZENDE (2007) refere-se ao deslocamento entre as ações realizadas por
especialistas e os grupos identitários na noção tradicional de Patrimônio:
As noções tradicionais de Patrimônio ancoravam-se na
ideia da descoberta (ou resgate) de uma memória e uma identidade nacional a ser
preservada; atividade possível apenas através da intervenção de especialistas.
Esta noção de descoberta ou resgate estava intimamente ligada à ideia de
imutabilidade da memória e, portanto, da identidade, o que garantiria a
permanência e universalidade dos bens culturais, objeto da ação
patrimonialista. Hoje está claro, para variadas áreas de conhecimento, que
tanto a memória como a identidade são frutos de processos de construção, que
não ocorrem apenas nas esferas autorizadas, mas são realizados continuamente
pelos mais variados por grupos (e mesmo pelos indivíduos), em permanente
transformação. (REZENDE, 2007, p. n/d)
A
partir da problemática posta pode-se constituir uma acepção para interpretação do
patrimônio cultural, no sentido de avaliar “para que e para quem” preservar e
“de quem” é esse patrimônio.
Em
primeiro lugar, pode-se considerar a preservação do patrimônio cultural como
parte de um processo de reconhecimento de identidades que tem sido afetado pela
globalização e pelo advento de um mercado de consumo massificado da cultura. Portanto,
contrariamente a esse intuito, o patrimônio não pode ser visto somente como
mercadoria. Sua função não pode ser estabelecida a partir do potencial de
comercialização, mas concebida e difundida como fator de consolidação dos
referenciais de memória coletiva, capaz de intermediar processos identitários
em um grupo social. Esse papel de intermediação atende a necessidade de agregar
valor aos símbolos e experiências que diferenciam uma determinada sociedade e,
inegavelmente, permitem a perpetuação de valores comuns, crenças, hábitos e relações
sociais.
A
adoção direta da patrimonialização como antídoto a perda de identidade e de
referenciais socioculturais não produz efeito se constituída de modo arbitrário.
O reconhecimento deve estar introjetado no grupo que contém o bem cultural a
ser preservado, a fim de não reduzir a preservação a uma obrigação de Estado. A
proteção assentida no seio da sociedade mantenedora dá ao objeto condições de
perpetuação e garante uma função a este, enquanto elemento apropriado pelos
indivíduos e agregado de valor cultural.
Por
último, ressalta-se que o patrimônio cultural deve servir a uma sociedade,
qualquer que seja, no sentido de ser servo da memória coletiva e do processo
identitários desta; mas, também, ser útil ao desenvolvimento local. Não cabe incentivar
a negação da exploração do potencial socioeconômico de um bem cultural em prol somente
da preservação da singularidade de cada grupo, pois isto seria negar a
transformação contida na evolução da própria cultura humana. Porém, antes
disso, é preciso significar as ações, os elementos e os conceitos por trás da preservação
do patrimônio, para que os métodos adotados não sejam esvaziados de validade e
fiquem à mercê do consumismo provocado pela cultura massificada.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio
de Janeiro: DP&A Editora, 2006. 102 p.
MELO, Danilo A. S.. Esquecimento e Memória no Contemporâneo:
Interlocução entre Tarde e Nietzsche. In.: BARRANECHEA, Miguel Angel de. As Dobras da Memória. Rio de Janeiro:
7Letras, 2008. p. 131-141.
REZENDE, Darcilene Sena. Patrimônio documental e construção da
identidade em tempos de globalização: a classificação arquivística como
garantia da pluralidade de memórias. In: VII Congreso de Archivología del Mercosur: archivos, patrimonio
documental del futuro, 2007, Viña del Mar (Chile). VII Congreso de
Archivología del Mercosur: archivos, patrimonio documental del futuro. Santiago
: ASOCARCHI, 2007.
RICCEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007. 535 p.