sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Imóveis Inseridos em Núcleos Urbanos Tombados

                 Possuir um imóvel em núcleos urbanos tombados implica em uma série de restrições ao uso deste. A Constituição Brasileira assegura o direito de propriedade ao cidadão, porém, esse direito não lhe é absoluto, garantindo que a função social do imóvel sobressai sobre o uso pleno que o proprietário dispõe.
Deste modo o usufruto do imóvel, tombado ou no entorno de monumentos, bem como sua conservação obrigam ao proprietário a se adequar a legislação, impondo sobre este o dever de utilizá-lo dentro dos limites estabelecidos pela lei, de modo a privilegiar a função social da propriedade instituída pela Constituição. Assim, a sobreposição do direito da coletividade sobre o privado foi um dos dispositivos utilizados para a preservação dos bens edificados de valor histórico e artístico.
O Decreto-Lei 25/37, por exemplo, regulamenta a proteção do bem tombado e impõe sobre os imóveis do entorno os seguintes efeitos, dispostos no artigo 18º deste:

“sem prévia autorização do Serviço de Patrimônio Histórico Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade nem nela colocar anúncio ou cartazes, sob pena de ser mandado destruir a obra ou retirado o objeto, impondo-se neste caso a multa de 50 % do valor do mesmo objeto.”[i]

Ao mesmo tempo, as restrições não podem retirar dos espaços que concentram testemunhos da cultura da cidade a sua vitalidade e funcionalidade. Este assunto é tratado na Carta de Petrópolis de 1987[ii] e recomenda que devam ser mantidas a residência ou atividades tradicionais que sempre abrigaram. A intenção desta carta era integrar o bem de valor histórico a cidade, de modo que o espaço urbano mantivesse suas características através do planejamento territorial. Ainda, a recomendação considerou essencial a predominância do valor social da propriedade sobre sua condição de mercadoria.
A Carta de Veneza de 1964 nos artigos 5º e 6º trata da preservação dos imóveis de interesse cultural onde:

Art. 5º A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil a sociedade; tal destinação é, portanto, desejável, mas não pode nem deve alterar a disposição ou decoração dos edifícios. É somente dentro destes limites impostos que se devem conceber e se podem autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes.
Art. 6 º A conservação de um monumento implica a preservação de uma ambiência em sua escala. Enquanto sua ambiência subsistir, será conservada, e toda construção nova, toda destruição e toda modificação que possam alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas.[iii]

Esta recomendação define que a utilização do bem edificado é útil e necessária para a sua conservação. Entretanto, o uso do edifício é regulamentado em função da preservação e do usufruto pela coletividade, restringindo as alterações às mínimas exigidas pela “evolução dos usos e costumes”.
A regulação da preservação dos sítios históricos recai sobre o poder público dentro das suas esferas de atuação. A Carta Magna garante ao cidadão o direito sobre sua propriedade, mas estabelece restrições quanto ao exercício pleno deste direito. Dentro desse arcabouço de leis reguladoras, cabe ao município gerir a ocupação do solo urbano através de planos diretores e/ou por meio de leis de caráter urbanístico. De acordo com as regras estabelecidas, o uso da propriedade deve adequar-se: à zona em que se situa, ao coeficiente de aproveitamento, à taxa de ocupação, aos recuos, ao gabarito e a circulação. Segundo FRANCISCO (2001):

Com efeito, a partir do momento que a propriedade sobre o bem imóvel urbano é entendida como um instrumento para a obtenção do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e para a garantia do bem-estar dos seus habitantes, a possibilidade, ou não, de edificar em um terreno, bem como a forma com que isso se fará, deixa de ser um exercício da vontade do proprietário para ser fruto de uma decisão política, tomada pela sociedade, que se encontra consubstanciada no plano diretor, que é aprovado por uma lei. (...) O direito de construir, portanto, passa a repousar sobre a lei que aprova o plano diretor, é decorrência deste fundamento, não mais do arbítrio do proprietário (...).[iv]

Outra vez chama a atenção que o direito do cidadão usufruir sobre sua propriedade está condicionado a outros fatores alheios a sua vontade.
O artigo 28 da Carta de Nairóbi de 1976 ressalta que deve ser tomado um cuidado especial na regulação e no controle das novas construções, para assegurar que sua arquitetura se enquadre harmoniosamente dentro da ambiência do sítio em que estas se incluírem. Deste mesmo artigo cita-se:

(...) uma análise do contexto urbano deveria preceder qualquer construção nova, não só para definir o caráter geral do conjunto, como para analisar suas dominantes: harmonia das alturas, cores, materiais e formas, elementos constitutivos do agenciamento das fachadas e dos telhados, relações de volumes construídos e dos espaços, assim como suas proporções médias e implantação dos edifícios. Uma atenção especial deveria ser prestada à dimensão dos lotes, pois qualquer modificação poderia resultar em um efeito de massa, prejudicial à harmonia do conjunto.[v]

Esta recomendação aprofunda a importância da relação da inserção do elemento novo no conjunto preservado, que sua introdução deve resultar de estudos para delimitar seus impactos naquele contexto.
A Carta de Burra de 1980[vi], nos artigos 6º, 7º e 8º, reforça as recomendações sobre os efeitos da inserção de novos elementos ou de adaptações nos imóveis de valor histórico e artístico. Destaca que as opções a serem feitas na conservação do bem deverão ser definidas previamente com base na compreensão de sua significação cultural e de sua condição material. Determinando que as opções assim efetuadas definam as futuras destinações consideradas compatíveis com o bem, o que implica: primeiramente na ausência de modificações ou naquelas que possibilitem reversão, ou ainda, modificações cujo impacto sejam o menor possível. É ressaltada a necessidade de manutenção de um entorno visual apropriado no plano das formas, da escala, das cores, das texturas, dos materiais, etc. Não permitindo a introdução de elementos que prejudiquem a fruição daquele bem.
A Carta de Nara de 1994 relaciona autenticidade e contexto, presumindo a conexão destes dois termos:

Conservação da autenticidade dos conjuntos urbanos com um valor patrimonial pressupõe a manutenção do seu conteúdo sociocultural, melhorando a qualidade de vida dos seus habitantes. É imprescindível o equilíbrio entre o edifício e seu entorno, tanto na paisagem urbana quanto rural. Sua ruptura seria um atentado contra a autenticidade. Para isso, é necessário criar normas especiais que assegurem a manutenção do entorno primitivo, quando for possível, ou que gerem relações harmoniosas de massa, textura e cor.[vii]

A importância de preservar a ambiência do bem tombado reflete na sua autenticidade, de modo a garantir a aquele que frui este bem a relação sincera entre seu valor histórico e artístico e o meio que o circunda.
A conservação do meio no qual se insere um bem e as medidas que recaem sobre este entorno refletem no usufruto do proprietário sobre seu imóvel. Tal imóvel fica restrito a grandes transformações, toda e qualquer alteração será regulada e contida dentro das leis de proteção. O desconhecimento da legislação é, às vezes, um dos maiores atentados aos bens tombados, implicando em prejuízo por parte do proprietário ou do contexto no qual está inserido o monumento, quando não houver fiscalização e controle nas intervenções.



[i] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0025.htm

[ii] Carta de Petrópolis, 1987. In: CURY, Isabelle. INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL). Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasília: IPHAN, 2004. (Edições do patrimônio).

[iii] Carta de Veneza, 1964. In: CURY, Isabelle. INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL). Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasília: IPHAN, 2004. (Edições do patrimônio).

[iv]  FRANCISCO, C. A. – Citação extraída de GASPARINI, A. Tombamento e Direito de Construir. Belo Horizonte: Fórum, 2005. 112p.

[v] Carta de Nairóbi, 1976. In: CURY, Isabelle. INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL). Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasília: IPHAN, 2004. (Edições do patrimônio).

[vi] Carta de Burra, 1980. In: CURY, Isabelle. INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL). Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasília: IPHAN, 2004. (Edições do patrimônio).

[vii] Carta de Nara, 1994. In: CURY, Isabelle. INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (BRASIL). Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasília: IPHAN, 2004. (Edições do patrimônio).