A arquitetura brasileira até meados do séc. XIX foi marcada pela
produção artesanal dos diversos elementos construtivos. Não havia uma
normatização segundo as dimensões e o estilo a ser seguido, mas uma intenção
formal de seguir os cânones arquitetônicos existentes. Dessa maneira, cada
edificação adquiriu um caráter único ligado ao tipo de material empregado, à
finalidade do edifício e ao saber do construtor que empregava a técnica por ele
dominada.
Esse quadro da arquitetura somente começou a se transformar com o
desenvolvimento das ferrovias no Brasil na segunda metade dos oitocentos, fato
que permitiu a melhoria da comunicação entre as diversas regiões povoadas do
país. Os novos meios de transporte permitiram a introdução de materiais e
elementos industrializados provindos da Europa, os quais se mesclaram ao
conhecimento construtivo já existente em terras brasileiras.
As mudanças introduzidas no séc. XIX conduziram à gradual
transformação dos modos de construir e permitiram o posterior desenvolvimento
da indústria dos materiais de construção no Brasil. Provocado por este
contexto, na década de 30 do séc. XX a arquitetura modernista foi introduzida
no país com o Edifício Capanema no Rio de Janeiro, tal fato deu suporte a
inserção do país no quadro da arquitetura desenvolvida nos EUA, Europa e em
outras partes do mundo.
Apesar da corrente de modernização provocada pelos novos métodos
construtivos e materiais introduzidos a partir da década de 30 do século
passado, essa tendência demorou a se firmar na construção civil. A dependência
do trabalho manual não permitiu o abandono completo do modo artesanal de
construir e manteve-se por boa parte do séc. XX como uma realidade no setor.
Nesse sentido, Hardman e Leonardi (1991) observam que:
No
século XIX e início do atual, entretanto, a construção civil ainda guardaria
muitas das características da arquitetura do século XVIII. Na construção de
casas residenciais, o trabalho ainda era artesanal, sendo empregados muitos
artistas nos serviços de alvenaria e madeira, guarnecimento de janelas e
balcões, utilização de ferro forjado, azulejos etc. (HARDMAN; LEONARDI, 1991,
p.39)
Com a evolução das técnicas construtivas e a inserção de materiais
industrializados na construção de edifícios, as práticas derivadas da
arquitetura colonial foram abandonadas gradualmente após as primeiras décadas
do séc. XX na maioria das cidades brasileiras. No entanto, o saber fazer ligado
às técnicas construtivas tradicionais sobreviveu em locais onde a renúncia
definitiva destas não foi possível, seja por fatores econômicos ou pela
existência de edifícios que necessitassem de tais técnicas para obras de
manutenções ou reformas.
Tais conhecimentos também foram necessários nas obras de restauro
promovidas após a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) em 1937. Esse órgão concentrou a responsabilidade para a
regulamentação e proteção do patrimônio cultural no país. Dessa forma, o IPHAN possui
uma contribuição significativa para que determinados ofícios fossem
preservados, principalmente, nas cidades chanceladas pelo órgão que possuem
edificações do período colonial, uma vez que as orientações para a restauração
destes imóveis determinam a manutenção de técnicas construtivas e materiais
semelhantes aos originais, no lugar da simples substituição.
Condicionados por estes e outros fatores extrínsecos a esse debate,
vários ofícios
tradicionais da construção civil ainda subsistem espalhados pelo país. Em Minas
Gerais, principalmente na região das cidades do Ciclo do Ouro, diversos profissionais
ligados a estas técnicas ainda podem ser encontrados em atividade, os quais
parte atua na em obras voltadas para a preservação do patrimônio edificado e parte
emprega tais conhecimentos em elementos usados na construção de novos imóveis.
Recentemente, tem sido verificada a intenção de se registrar o
conhecimento ligado a essas atividades pelo principal órgão de proteção do
patrimônio cultural no país. Em 2005, o IPHAN divulgou um projeto
com a finalidade de documentar os saberes e ofícios tradicionais aplicados à
construção e à arquitetura no Brasil. Tal ação resultou em uma pesquisa
realizada pelo
Projeto Mestre Artífices
que está estudando o tema em diversos estados brasileiros. Em Minas Gerais,
Alonso e Araújo (2010) fazem referência aos seguintes ofícios:
No
sítio como um todo foram encontrados mestres e oficiais que executam os mais
diferentes ofícios, que contribuíram para formar a sua própria paisagem
cultural e de suas localidades. Os ofícios identificados e documentados foram:
ofícios de carpinteiro e marceneiro, estucador, forjador artístico, fundidor,
marmoraria, pintor, canteiro, esteireiro, ferreiro, pedreiro, oleiro,
calceteiro. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.47)
De imediato, sabe-se que os mestres artífices normalmente possuem uma
faixa etária mais elevada e aprenderam os ofícios tradicionais a partir do
tirocínio in loco, apreendido a
partir do contato com as técnicas construtivas antigas. O conhecimento
adquirido, em boa parte dos casos, desenvolveu-se na observação de outros
mestres em atuação e no cotidiano do canteiro de obras. No contexto que trata
da forma de apreensão do saber fazer, os autores, citados anteriormente, fazem
a seguinte referência sobre a forma de aprendizado dos profissionais
pesquisados:
Nota-se
no sítio esta clara relação de transmissão do conhecimento, o qual se dá
prioritariamente pela relação mestre/aprendiz. [...] Ainda dentre os
profissionais identificados, notou-se a presença de alguns com tradição
familiar no ofício ou ainda com aprendizado na Europa. (ALONSO; ARAÚJO, 2010,
p.48)
O aprendizado dos ofícios conforme o registrado por Alonso e Araújo
(2010) se assemelha bastante com o modelo difundido no período colonial, de
acordo com a tradição difundida pelas Corporações de Ofícios da Idade Média. No
Brasil, no entanto, cabia às irmandades religiosas e confrarias o papel
desenvolvido pelas corporações, como regulador das atividades produtivas e do
ensino dos ofícios (HARDMAN; LEONARDI, 1991).
Na atualidade os laços de aprendizagem baseado na relação
mestre/aprendiz, apesar de desvinculados de um mediador externo como as
corporações ou as bandeiras de ofício, ainda são predominantes entre os mestres
artífices da construção tradicional. Pode-se presumir que na maioria dos casos,
o aprendiz submeteu-se a um período de aprendizado com um profissional já
experiente e dele absorveu a técnica. Nesse processo, a construção do
conhecimento nem sempre se dava de modo direto, na forma de ensinamento. O
saber era quase sempre adquirido a partir da observação do mestre durante o
exercício das atividades e assim internalizado.
Também é necessário destacar que na ausência de mestres para realizar
o ensinamento de determinada técnica construtiva, o aprendizado pode-se dar a
partir da observação da própria técnica já executada. ALONSO; ARAÚJO (2010) destacam que:
A
aplicação de trabalhos bastante elaborados [...] fez com que os profissionais
contratados atualmente para restaurações nestes edifícios[3] soubessem tanto quanto seus
predecessores, observando e aprendendo o saber fazer até mesmo na própria obra
original. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.48)
Nesse sentido, cabe aos mestres artífices um papel significante na
preservação do patrimônio arquitetônico derivado do período colonial, séc. XIX
e início do XX. O caráter artesanal das edificações provenientes destas épocas
exige mão de obra especializada nas diversas ações de proteção que estas
demandam, uma vez que o conhecimento das técnicas construtivas e materiais são
fundamentais para o bom desempenho dos serviços a serem executados.
Estes profissionais são de fundamental importância no campo da
restauração de imóveis, uma vez que existe em todo o país um grande número de
bens que demandam de preservação. De acordo com a metodologia empregada no
restauro, deve-se sempre preferir a manutenção de técnicas e materiais
semelhantes aos originais. Segundo a Declaração
de Amsterdã de 1975, “[...] é importante atentar para que os materiais de
construção tradicional ainda disponível e as artes e técnicas tradicionais
continuem a ser aplicados” (IPHAN, 2004, P. 209). Igualmente, a Carta de Restauro de 1972, “[...] uma
exigência fundamental da restauração é respeitar e salvaguardar a autenticidade
dos elementos construtivos da obra. Esse princípio deve sempre guiar as
escolhas operacionais.” (BRANDI, 2005, p. 244).
Em alguns locais esse conhecimento ainda é uma experiência vivenciada
por mestres ou grupos que desenvolvem essas práticas; entretanto, na maior
parte do país é possível verificar o desconhecimento de tais atividades, haja
vista que estas já estão em desuso há vários anos.
Se de um lado o saber-fazer das técnicas da construção tradicional se
encontra ameaçado pelo caráter atual da construção civil e pela perda das
referências culturais causadas pela homogeneização provocada pela indústria
cultural; por outro lado há uma tendência à revalorização deste saber.
CASTRIOTA (2010) nos diz que:
Ao
se tratar dessas técnicas tradicionais não podemos perder de vista que, num
mundo em rápido processo de globalização e homogeneização cultural, elas se
encontram crescentemente ameaçadas por um processo de rápido desaparecimento.
Se esta vai ser a tendência dominante, pode ser detectada, no entanto, uma
contra-tendência no que diz respeito às técnicas tradicionais: o reconhecimento
da necessidade de se preservar o patrimônio edificado bem como a crescente preocupação
ecológica têm levado à sua revalorização. (CASTRIOTA, 2010, p.24)
Dessa forma, o papel dos mestres artífices no campo da restauração de
imóveis é de fundamental importância para a manutenção do saber-fazer ligado à
prática desse profissional. O mercado produzido pela preservação do patrimônio
edificado é um dos caminhos para fomentar a formação de novos mestres e, assim,
garantir que o conhecimento das técnicas tradicionais seja transmitido para as
novas gerações.
REFERÊNCIAS
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Disponível em: <http://issuu.com/alexisazevedo/docs/caderno_memoria_mg>.
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Mapas de interculturalidade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. 284p.
______. Culturas Híbridas – Estratégias para
entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997. 385p.
CASTRIOTA, Leonardo B.. O Registro dos Mestres
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Leonardo B.. Mestres Artífices da
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Disponível em: <http://issuu.com/alexisazevedo/docs/caderno_memoria_mg>.
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COSTA, Maria Cristina C.. Sociologia – Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna,
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Ricahrd. A Fabricação das Competências. In: TOMASI,
Antônio P. N.. Da Qualificação à Competência. Campinas: Papirus, 2004. p. 75-92.
É importante ressaltar
que o termo ofício no Brasil adquiriu
conotações diferentes, dadas de acordo com o contexto no qual eram tratadas. De
acordo com Luiz Antônio Cunha: “O termo
ofício era empregado em três sentidos. No sentido mais estrito, o ofício era o
conjunto das práticas definidoras de uma profissão (o ofício de carpintaria de
casa, por exemplo). Em sentido um pouco mais amplo, ofício designava o conjunto
de praticantes de uma mesma profissão (todos os carpinteiros de casa, por
exemplo). Em sentido ainda mais amplo, finalmente, o termo ofício era sinônimo
de corporação, abrangendo mais de um ofício-profissão (os carpinteiros de casa
estavam na mesma corporação dos pedreiros, dos canteiros, dos ladrilheiros e
dos violeiros)”. (CUNHA, 2000a, p. 42). Nesta pesquisa trataremos do termo ofício conforme a primeira definição
apresentada, como um conjunto de práticas contidas em uma determinada profissão
e capaz de conferir-lhe atributos característicos.