segunda-feira, 9 de julho de 2012

O Campo da Restauração de Imóveis - Saberes e Agentes, Questões para Debate


A arquitetura brasileira até meados do séc. XIX foi marcada pela produção artesanal dos diversos elementos construtivos. Não havia uma normatização segundo as dimensões e o estilo a ser seguido, mas uma intenção formal de seguir os cânones arquitetônicos existentes. Dessa maneira, cada edificação adquiriu um caráter único ligado ao tipo de material empregado, à finalidade do edifício e ao saber do construtor que empregava a técnica por ele dominada.
Esse quadro da arquitetura somente começou a se transformar com o desenvolvimento das ferrovias no Brasil na segunda metade dos oitocentos, fato que permitiu a melhoria da comunicação entre as diversas regiões povoadas do país. Os novos meios de transporte permitiram a introdução de materiais e elementos industrializados provindos da Europa, os quais se mesclaram ao conhecimento construtivo já existente em terras brasileiras.
As mudanças introduzidas no séc. XIX conduziram à gradual transformação dos modos de construir e permitiram o posterior desenvolvimento da indústria dos materiais de construção no Brasil. Provocado por este contexto, na década de 30 do séc. XX a arquitetura modernista foi introduzida no país com o Edifício Capanema no Rio de Janeiro, tal fato deu suporte a inserção do país no quadro da arquitetura desenvolvida nos EUA, Europa e em outras partes do mundo.
Apesar da corrente de modernização provocada pelos novos métodos construtivos e materiais introduzidos a partir da década de 30 do século passado, essa tendência demorou a se firmar na construção civil. A dependência do trabalho manual não permitiu o abandono completo do modo artesanal de construir e manteve-se por boa parte do séc. XX como uma realidade no setor. Nesse sentido, Hardman e Leonardi (1991) observam que:

No século XIX e início do atual, entretanto, a construção civil ainda guardaria muitas das características da arquitetura do século XVIII. Na construção de casas residenciais, o trabalho ainda era artesanal, sendo empregados muitos artistas nos serviços de alvenaria e madeira, guarnecimento de janelas e balcões, utilização de ferro forjado, azulejos etc. (HARDMAN; LEONARDI, 1991, p.39)

Com a evolução das técnicas construtivas e a inserção de materiais industrializados na construção de edifícios, as práticas derivadas da arquitetura colonial foram abandonadas gradualmente após as primeiras décadas do séc. XX na maioria das cidades brasileiras. No entanto, o saber fazer ligado às técnicas construtivas tradicionais sobreviveu em locais onde a renúncia definitiva destas não foi possível, seja por fatores econômicos ou pela existência de edifícios que necessitassem de tais técnicas para obras de manutenções ou reformas.
Tais conhecimentos também foram necessários nas obras de restauro promovidas após a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1937. Esse órgão concentrou a responsabilidade para a regulamentação e proteção do patrimônio cultural no país. Dessa forma, o IPHAN possui uma contribuição significativa para que determinados ofícios fossem preservados, principalmente, nas cidades chanceladas pelo órgão que possuem edificações do período colonial, uma vez que as orientações para a restauração destes imóveis determinam a manutenção de técnicas construtivas e materiais semelhantes aos originais, no lugar da simples substituição.
Condicionados por estes e outros fatores extrínsecos a esse debate, vários ofícios[1] tradicionais da construção civil ainda subsistem espalhados pelo país. Em Minas Gerais, principalmente na região das cidades do Ciclo do Ouro, diversos profissionais ligados a estas técnicas ainda podem ser encontrados em atividade, os quais parte atua na em obras voltadas para a preservação do patrimônio edificado e parte emprega tais conhecimentos em elementos usados na construção de novos imóveis.
Recentemente, tem sido verificada a intenção de se registrar o conhecimento ligado a essas atividades pelo principal órgão de proteção do patrimônio cultural no país. Em 2005, o IPHAN divulgou um projeto[2] com a finalidade de documentar os saberes e ofícios tradicionais aplicados à construção e à arquitetura no Brasil. Tal ação resultou em uma pesquisa realizada pelo Projeto Mestre Artífices que está estudando o tema em diversos estados brasileiros. Em Minas Gerais, Alonso e Araújo (2010) fazem referência aos seguintes ofícios:

No sítio como um todo foram encontrados mestres e oficiais que executam os mais diferentes ofícios, que contribuíram para formar a sua própria paisagem cultural e de suas localidades. Os ofícios identificados e documentados foram: ofícios de carpinteiro e marceneiro, estucador, forjador artístico, fundidor, marmoraria, pintor, canteiro, esteireiro, ferreiro, pedreiro, oleiro, calceteiro. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.47)

De imediato, sabe-se que os mestres artífices normalmente possuem uma faixa etária mais elevada e aprenderam os ofícios tradicionais a partir do tirocínio in loco, apreendido a partir do contato com as técnicas construtivas antigas. O conhecimento adquirido, em boa parte dos casos, desenvolveu-se na observação de outros mestres em atuação e no cotidiano do canteiro de obras. No contexto que trata da forma de apreensão do saber fazer, os autores, citados anteriormente, fazem a seguinte referência sobre a forma de aprendizado dos profissionais pesquisados:

Nota-se no sítio esta clara relação de transmissão do conhecimento, o qual se dá prioritariamente pela relação mestre/aprendiz. [...] Ainda dentre os profissionais identificados, notou-se a presença de alguns com tradição familiar no ofício ou ainda com aprendizado na Europa. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.48)

O aprendizado dos ofícios conforme o registrado por Alonso e Araújo (2010) se assemelha bastante com o modelo difundido no período colonial, de acordo com a tradição difundida pelas Corporações de Ofícios da Idade Média. No Brasil, no entanto, cabia às irmandades religiosas e confrarias o papel desenvolvido pelas corporações, como regulador das atividades produtivas e do ensino dos ofícios (HARDMAN; LEONARDI, 1991).
Na atualidade os laços de aprendizagem baseado na relação mestre/aprendiz, apesar de desvinculados de um mediador externo como as corporações ou as bandeiras de ofício, ainda são predominantes entre os mestres artífices da construção tradicional. Pode-se presumir que na maioria dos casos, o aprendiz submeteu-se a um período de aprendizado com um profissional já experiente e dele absorveu a técnica. Nesse processo, a construção do conhecimento nem sempre se dava de modo direto, na forma de ensinamento. O saber era quase sempre adquirido a partir da observação do mestre durante o exercício das atividades e assim internalizado.
Também é necessário destacar que na ausência de mestres para realizar o ensinamento de determinada técnica construtiva, o aprendizado pode-se dar a partir da observação da própria técnica já executada.  ALONSO; ARAÚJO (2010) destacam que:

A aplicação de trabalhos bastante elaborados [...] fez com que os profissionais contratados atualmente para restaurações nestes edifícios[3] soubessem tanto quanto seus predecessores, observando e aprendendo o saber fazer até mesmo na própria obra original. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.48)

Nesse sentido, cabe aos mestres artífices um papel significante na preservação do patrimônio arquitetônico derivado do período colonial, séc. XIX e início do XX. O caráter artesanal das edificações provenientes destas épocas exige mão de obra especializada nas diversas ações de proteção que estas demandam, uma vez que o conhecimento das técnicas construtivas e materiais são fundamentais para o bom desempenho dos serviços a serem executados.
Estes profissionais são de fundamental importância no campo da restauração de imóveis, uma vez que existe em todo o país um grande número de bens que demandam de preservação. De acordo com a metodologia empregada no restauro, deve-se sempre preferir a manutenção de técnicas e materiais semelhantes aos originais. Segundo a Declaração de Amsterdã de 1975, “[...] é importante atentar para que os materiais de construção tradicional ainda disponível e as artes e técnicas tradicionais continuem a ser aplicados” (IPHAN, 2004, P. 209). Igualmente, a Carta de Restauro de 1972, “[...] uma exigência fundamental da restauração é respeitar e salvaguardar a autenticidade dos elementos construtivos da obra. Esse princípio deve sempre guiar as escolhas operacionais.” (BRANDI, 2005, p. 244).
Em alguns locais esse conhecimento ainda é uma experiência vivenciada por mestres ou grupos que desenvolvem essas práticas; entretanto, na maior parte do país é possível verificar o desconhecimento de tais atividades, haja vista que estas já estão em desuso há vários anos.
Se de um lado o saber-fazer das técnicas da construção tradicional se encontra ameaçado pelo caráter atual da construção civil e pela perda das referências culturais causadas pela homogeneização provocada pela indústria cultural; por outro lado há uma tendência à revalorização deste saber. CASTRIOTA (2010) nos diz que:

Ao se tratar dessas técnicas tradicionais não podemos perder de vista que, num mundo em rápido processo de globalização e homogeneização cultural, elas se encontram crescentemente ameaçadas por um processo de rápido desaparecimento. Se esta vai ser a tendência dominante, pode ser detectada, no entanto, uma contra-tendência no que diz respeito às técnicas tradicionais: o reconhecimento da necessidade de se preservar o patrimônio edificado bem como a crescente preocupação ecológica têm levado à sua revalorização. (CASTRIOTA, 2010, p.24)

Dessa forma, o papel dos mestres artífices no campo da restauração de imóveis é de fundamental importância para a manutenção do saber-fazer ligado à prática desse profissional. O mercado produzido pela preservação do patrimônio edificado é um dos caminhos para fomentar a formação de novos mestres e, assim, garantir que o conhecimento das técnicas tradicionais seja transmitido para as novas gerações.

REFERÊNCIAS

ALONSO, Paulo H.; ARAÚJO, Guilherme M.. Técnicas Construtivas Tradicionais em Minas Gerais: Sítios, Localidades e Ofícios. In: CASTRIOTA, Leonardo B.. Mestres Artífices da Construção Tradicional – Minas Gerais. IPHAN/Monumenta, 2010. p. 37-62. Disponível em: <http://issuu.com/alexisazevedo/docs/caderno_memoria_mg>. Acesso em: 27 Ago. 2011.

BARONE, Rosa E. M.. Canteiro-Escola: trabalho e educação na construção civil. São Paulo: Educ, 1999. 400p.

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê, 2004. 262 p.

CANCLINI, Nestor G. Diferentes, Desiguais e Desconectados: Mapas de interculturalidade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. 284p.

______. Culturas Híbridas – Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1997. 385p.

CASTRIOTA, Leonardo B.. O Registro dos Mestres Artífices: Preservação do saber fazer da construção tradicional. In: CASTRIOTA, Leonardo B.. Mestres Artífices da Construção Tradicional – Minas Gerais. IPHAN/Monumenta, 2010. p. 23-36. Disponível em: <http://issuu.com/alexisazevedo/docs/caderno_memoria_mg>. Acesso em: 27 Ago. 2011.

COSTA, Maria Cristina C.. Sociologia – Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2005. 416p.

CUNHA, Luiz A. O Ensino de Ofícios Artesanais e Manufatureiros no Brasil Escravocrata. São Paulo: Ed. Unesp; Brasília Flacso, 2000a.

GALVÃO, Ana M. O.; LOPES, Eliane M. T.. Território Plural: A pesquisa em história da educação. 1ª ed. São Paulo: Ática, 2010. 112p.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. 224p.

HARDMAN, Foot; LEONARDI, Victor. História da Industria e do Trabalho no Brasil: das origens aos anos 20. 2ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 1991. 336 p.

INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL (IPHAN/BRASIL). CURY, Isabelle (org.). Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasília: IPHAN, 2004. 408p. (Edições do patrimônio).

QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, Luc Van. Manual de Investigação em Ciências Sociais. 5ª Ed. Lisboa: Gradiva, 2008. 284p.

WITTORSKI, Ricahrd. A Fabricação das Competências. In: TOMASI, Antônio P. N.. Da Qualificação à Competência. Campinas: Papirus, 2004. p. 75-92.



[1] É importante ressaltar que o termo ofício no Brasil adquiriu conotações diferentes, dadas de acordo com o contexto no qual eram tratadas. De acordo com Luiz Antônio Cunha: “O termo ofício era empregado em três sentidos. No sentido mais estrito, o ofício era o conjunto das práticas definidoras de uma profissão (o ofício de carpintaria de casa, por exemplo). Em sentido um pouco mais amplo, ofício designava o conjunto de praticantes de uma mesma profissão (todos os carpinteiros de casa, por exemplo). Em sentido ainda mais amplo, finalmente, o termo ofício era sinônimo de corporação, abrangendo mais de um ofício-profissão (os carpinteiros de casa estavam na mesma corporação dos pedreiros, dos canteiros, dos ladrilheiros e dos violeiros)”. (CUNHA, 2000a, p. 42). Nesta pesquisa trataremos do termo ofício conforme a primeira definição apresentada, como um conjunto de práticas contidas em uma determinada profissão e capaz de conferir-lhe atributos característicos.
[2] Ver OLIVEIRA, Ana G.; NAVES, Maíra F. Projeto Mestres Artífices: Documentação dos saberes e ofícios tradicionais aplicados à construção e à arquitetura no Brasil. IPHAN, 2005.
[3] Os autores fazem referência aos prédios das antigas Secretarias de Estado de Minas Gerais, situadas na Praça da Liberdade em Belo Horizonte, que passaram por recente restauração.

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